Dicionário do Dialeto Caipiracicabano – Arco, Tarco e Verva
Dicionário do Dialeto Caipiracicabano – Arco, Tarco e Verva

Dicionário do Dialeto Caipiracicabano – Arco, Tarco e Verva

Dicionário do Dialeto Caipiracicabano – Arco, Tarco e Verva

Atualizada e ampliada, a sexta edição do Dicionário do Dialeto Caipiracicabano – Arco, Tarco, Verva, de Cecílio Elias Netto, reúne 1.479 verbetes. Quase 30 anos depois da publicação do primeiro dicionário, a nova versão foi apresentada ao público no momento em que o dialeto e o sotaque piracicabanos são reconhecidos como “patrimônio histórico e cultural imaterial da cidade de Piracicaba” – decreto 16.766 assinado pelo prefeito municipal em 25 de agosto de 2016.

O livro presta homenagem a José Ferraz de Almeida Jr., a quem o autor intitula como o primeiro ‘caipira’ da história: “Muito antes de Monteiro Lobato, de Cornélio Pires, de Amadeu Amaral, de Thales de Andrade, de João Chiarini e, modestamente, deste autor, foi Almeida Júnior quem enxergou, sentiu e entendeu a alma caipira como um privilégio especialíssimo”.

O lançamento aconteceu em 30 de agosto de 2016, durante o “I Encontro dos Caipiracicabanos” – realizado pelo ICEN, em comemoração ao primeiro aniversário do instituto. O evento também marcou a inauguração da sede do ICEN, na Rua do Porto, e apresentação do Caipiracicabaninha, seu mascote.

Sotaque e Dialeto: Patrimônio Imaterial do Município

O pedido de registro do sotaque e do dialeto caipiracicabanos como patrimônio imaterial partiu do ICEN – Instituto Cecílio Elias Netto, que, unido a outras três entidades culturais – o Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba (IHGP), a Associação Piracicabana de Artistas Plásticos (APAP) e a Academia Piracicabana de Letras (APL) –, requereu junto ao CODEPAC – Conselho de Defesa de Patrimônio Cultural de Piracicaba o seu devido reconhecimento.

E foi no contexto desse proceso que o Dicionário do Dialeto Caipiracicabano – Arco, Tarco e Verva foi incluído como documento comprobatório e foi peça-chave para o referido registro, tendo sido  oficializado como Livro-Símbolo da Linguagem Caipiracicabana (Decreto Legislativo nº 15, de 30/8/2001).

Caipiracicabanismo

A linguagem tem sido reconhecida entre as principais referências da identidade cultural batizada como “caipiracicabanismo” – neologismo criado pelo escritor Thales de Andrade e popularizado por João Chiarini.

Em Piracicaba, este linguajar permanece insistentemente, como que desafiando as mudanças linguísticas, culturais, imigratórias e a poderosa influência da televisão. Em bairros e distritos – como os de Santana e Santa Olímpia – é um linguajar de difícil compreensão aos “não iniciados”. Os “erres” carregados – “poooorta”, “tooorta” – têm uma sonoridade particular, tratando-se do chamado “R retroflexo”, quando a língua se volta para dentro.

Segundo Cecílio Elias Netto, o Dicionário do Dialeto Caipiracicabano tem, ao longo das décadas, a preocupação de registrar e de valorizar esse tesouro linguístico e cultural que, na realidade, é uma herança do “linguajar paulista” nos seus primórdios, na mistura do português arcaico e o indígena.

Prefácio, por Carlos Vogt

“Falar sobre o linguajar de um povo necessariamente implica falar de sua própria vida, sua maneira de ser, de ver e entender o mundo. Daí, a importância em se preservar a sua própria linguagem, seja como forma de compreender a história, seja como respeito ao próprio homem que, um dia, a constituiu e dela e por ela foi constituído.

É nessa perspectiva que me parece significativa a edição de mais este volume de Arco, Tarco, Verva, do jornalista piracicabano Cecílio Elias Netto. Envolvido num trabalho de recuperação e preservação da memória da região de Piracicaba e do Tietê Médio — primeiro com o semanário “A Província” — o jornalista conseguiu, ao longo das últimas décadas, reunir expressões, falas, um linguajar que hoje desaparece da camada média da população, embora ainda seja encontrado nos habitantes mais idosos e mais fechados em seus próprios grupos culturais de periferia e dos pequenos sítios que ainda sobrevivem.

O que parece simplesmente pitoresco, hílare ou até mesmo chulo, dependendo da óptica de quem o leia, na prática remete a um outro tempo daqueles que povoaram esta região, a outra compreensão da vida, a uma outra forma de amar, de trabalhar, de explicar o que ocorria à sua volta. E assim deve ser compreendido, assim deve ser analisado. Porque ao nos voltarmos à composição de expressões, à formação de termos aparentemente descabidos, o que iremos descobrir é que deles emanam, na prática, uma maneira muito mais simples e sem dificuldades de se explicar o que se vê. É o caso, por exemplo, de “assuntá”, que nada mais significa do que informar-se, prestar atenção. Ou, então, da expressão “acabá de acabá”, com seu significado óbvio.

Enquanto, até então o sotaque piracicabano foi algum motivo de zombaria e discriminação, com a edição desse volume o que se abre no horizonte é, na prática, até mesmo novas linhas de entendimento do próprio desenvolvimento regional, de suas interações, influências e limites. Porque, ao pesquisador mais atento, este livro certamente será indicador de pistas e linhas que, ao passarem pela análise da linguagem, poderão levar a novas formas de se entender o processo de mudanças, de aculturação e mesmo de influência dos meios de comunicação em massa.

(…)

Para aqueles que nasceram, cresceram ou em algum período da sua vida viveram no interior de São Paulo, ler esta obra será matar as saudades de um outro tempo, recuperar situações que certamente trarão lembranças extremamente pessoais. Para aqueles que se dedicam à interpretação da história, pesquisadores que sejam da área da linguística, da sociologia, dos movimentos de migração e urbanização, tal leitura também será enriquecedora. E até  mesmo os que desejam uma versão diferente, capaz de realçar o que acreditam ser um caipirismo que já se foi, nada a reclamar.” (…)

Apresentação, por Cecílio Elias Netto

Ao dar-me conta de terem-se passado 28 anos desde o lançamento da primeira edição deste dicionário – e estar, ele, em sua 6ª edição, atualizada, ampliada, revista – mergulhei, novamente, no mistério do tempo. E continuo sem entendê-lo, embora fascinado pelos segredos do tempo e as mudanças do espaço.

Ao trabalhar nesta 6ª edição – e ainda íntimo de palavras e expressões que, algumas delas, parecem eternas – foi-me inevitável viajar por estas quase três décadas. E, por incrível me pareça, vejo-me diante daquele episódio que me despertou para a certeza de o “caipiracicabanismo” e a “caipiracicabanidade” serem, realmente, uma preciosidade a ser guardada com cuidados de amante apaixonado.

Foi num já longínquo 1986, em Brasília, onde eu me encontrava a trabalho. Recordo-me com detalhes, pois foi quando tive o despertar. Eu aguardava ser recebido pelo Ministro Mário Andreazza. E ele estava atrasado para receber as diversas pessoas para as quais tinha agendado o encontro. Os minutos passavam-se, passaram-se cerca de duas horas. E, então, um senhor grisalho, gentil, veio cumprimentar-nos desculpando-se pelo atraso. O que fazer, senão aceitar as desculpas? Só me lembro de, quando ele se aproximou de mim, ter-lhe respondido sei lá com que expressão – “taque duro”, “num isquente a muringa” – e o chefe de gabinete paralisou-se, olhando-me fixamente. Emocionado, ele me apontou o dedo e falou: “Piracicaba!”.

Ele identificou a “Noiva da Colina” por meu sotaque que, admito, não é dos mais carregados.  E o impressionante: ele se formara, há 40 anos, pela ESALQ, aqui morando por quatro anos, e nunca mais retornara. Mas o sotaque, os “erres” arrastados, as expressões levaram-no a identificar a origem. E lá estava, para mim, a descoberta de algo que eu sempre pressentira, mas não tinha, até então, comprovado: Piracicaba é uma “griffe”, uma marca. E o nosso sotaque faz parte de uma identidade especialíssima, o nosso singular caipiracicabanismo.

Tratou-se, para mim, da confirmação de um tesouro. E daí nasceram a ideia e o desejo de lutar para preservá-lo, para ajudar a valorizá-lo, contando a história e recuperando memórias da saga piracicabana.  Então, alguns meses após aquele encontro ocasional, fortaleceu-se-me ainda mais a ideia que me instigava: criar um semanário – A Província – voltado à história, à memória, ao folclore, aos “causos” de Piracicaba, esta cidade privilegiada. E, também, a maneira de falar, nossas expressões, a criatividade popular. Tínhamos, na verdade, nos tornado – com esse dialeto, digamos assim – o referencial “caipira” do Estado de São Paulo. Para muitos, isso era motivo de zombaria. Para mim, o orgulho de uma identidade. E para poucos – muito poucos – o conhecimento de tratar-se do linguajar paulista dos primeiros tempos, a mistura do índio com o português arcaico. Era o nheengatu paulista. E, para o indígena, nheengatu significava falar bem, falar correto.  Mas o caipira como que criou uma outra linguagem, uma forma especial de falar.

De São Paulo de Piratininga, isso se espalhou para todo o interior. E não o contrário. No Vale do Tietê Médio – que é onde se localiza Piracicaba – isso se consolidou, em especial pela ausência de outras influências. Piracicaba, Capivari, Tietê, Itu, Pirapora, Porto Feliz, Sorocaba passaram a ser como que um nicho especial dessa maneira falar que se caracteriza, especialmente, pelo R retroflexo – no qual a língua se volta para trás – e em sua confusão com o L. A palavra porta, por exemplo, continua pronunciada com o R arrastado: “porrrta”. O L é pronunciado como R retroflexo. Por exemplo, Arco (álcool), tarco (talco) e verva  (Acqua Velva).

Transformações sociais, migrações internas, meios de comunicação de massa – como, em especial, rádio e televisão – produzem mudanças também lingüísticas, dada a notável mobilidade das línguas. Estrangeirismos, universidades que se abrem para estudantes das mais variadas regiões do país – tudo isso faz parte do processo de transformação. Piracicaba vive esse processo permanentemente, bastando lembrar a formação de um Distrito Industrial com empresas multinacionais, com funcionários com pronúncias as mais diversas, e, também, a expansão de nossas universidades. Isso tudo já deveria ter transformado o “sotaque” piracicabano, que Thales de Andrade alcunhou de “caipiracicabano”, que João Chiarini popularizou e que eu procuro divulgá-lo cada vez mais.

No entanto, há lei lingüística difícil de ser superada: “a maioria absorve a minoria”. E esse “dialeto caipiracicabano” continua vivo, sofrendo influência, sim, de todos os elementos, mas mantendo-se como majoritário. Um dia acabará? Talvez. O fato, porém, é que – 28 anos depois do primeiro dicionário e trabalhando no atual – eu mesmo me surpreendi: o “dialeto” está vivo, ainda que modificando-se, sendo acrescido de novas palavras e expressões.

Nesta 6ª Edição do “Dicionário do Dialeto Caipiracicabano” – que, inicialmente, denominei de “Arco, Tarco, Verva” – tento, ainda, deixar minha contribuição para registrar esse tesouro linguístico que forja a identidade piracicabana. Garanto que “taquei duro” para rever, ampliar e atualizar esta edição. Consegui registrar e recuperar mais palavras e expressões de nosso linguajar.  Mas valeu a pena, pois meu “caipiracicabanismo” fortaleceu-se ainda mais.

Fonte: A Província – www.aprovincia.com.br